Quando a gente fala em Amazônica, muitas cenas nos vêm à mente. É natural imaginar os grandes rios, a enorme floresta, a diversidade de animais e a variedade de vida existente num ambiente único no planeta.
Reportagem publicada no site g1 lança o questionamento: o que você pensaria se soubesse que, no passado, a Amazônia foi um grande mar de água salgada? Desde a década de 1970, pesquisadores no assunto discutiam hipóteses sobre isso. No entanto, para quem não faz parte da comunidade científica, a frase pode soar bem estranha.
A geóloga Lilian Maia Leandro da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) defendeu um doutorado sobre o assunto. Seu estudo, feito com um grupo de cientistas brasileiros, foi o primeiro a ser publicado no Geology Journal, principal fonte de divulgação internacional de pesquisas da área.
Lilian explica que tudo começou com o encontro de fósseis marinhos em locais próximos aos rios Solimões, Javari e Juruá. No início da década de 1990, a geóloga, paleoecologista e professora associada da Universidade de Amsterdam Carina Hoorn achou vestígios de materiais marinhos.
A cientista holandesa tem dedicado a carreira ao estudo da região amazônica. Materiais coletados na região tem sido analisado em laboratório desde 1998 pelo Museu Paraense Emílio Goeldi, coordenado pela bióloga Maria Inês Ramos.
“Encontramos algas de origem marinha, que são organismos de parede orgânica. Quando a gente começa a encontrar esses fósseis, que já foram vistos pela Carina Hoorn em 1993, a gente começa a identificá-los. A questão era a origem deles, de onde poderiam ter vindo. Quando Hoorn encontra, a comunidade científica ficou em choque, levou um tempo para o pessoal entender”, explica Lilian.
“Porque no sedimento, a gente não consegue enxergar indícios marinhos. Quando começamos a estudar a Amazônia e a enxergar um grande número de micro fósseis marinhos, tanto de parede orgânica quanto calcária, que são os casos dos ostracodes e foraminíferos aí a gente veio para uma questão, tentar entender por onde entrou esse mar na Amazônia”, acrescenta ela.
Ostracodes são pequenos crustáceos dotados de carapaça calcária, composto por duas valvas. Já os foraminíferos são o grupo mais importante de micro fósseis. São abundantes em rochas sedimentares e fornecem informações sobre a reconstrução desses ambientes e datação relativa de estratos.
Entre o material coletado nos sedimentos da Amazônia estão fósseis de arraias, de conchas e dentes de tubarões. O intrigante é que tudo isso estava localizado a mais de mil quilômetros de distância do oceano. Portanto , surgiu a pergunta, como eles como foram parar ali ?
Como o mar chegou ao continente
Para entender é preciso retornar ao Mioceno. Esse período ocorreu na Terra entre 23 milhões e 5 milhões de anos atrás. Os pesquisadores o consideram como a primeira época do Neógeno, que foi caracterizado por uma intensa atividade geológica no planeta dando origem às cordilheiras do Himalaia na Ásia, os Alpes na Europa e os Andes na América do Sul.
Naquele período, a bacia Amazônica era bem diferente. Havia uma conexão com o Mar do Caribe, já que a Cordilheira dos Andes na região de Mérida na Venezuela ainda não estava completamente fechada. Ou seja, havia um canal de comunicação entre a atual região Amazônica e o Caribe. Além disso, no Peru, a cadeia de montanhas não era tão alta como é hoje.
A geóloga conta que escolheu três pontos em diferentes locais no litoral sul-americano para comparar o material encontrado no solo amazônico com os de outros locais, a fim de saber a procedência.
“A gente escolheu três poços, um na costa do Peru, onde poderia ser mais provável, depois um no mar do Caribe, próxima à costa da Venezuela e outro na foz do rio Amazonas para entender e correlacionar que a gente encontra dentro da Amazônia ao redor da América do Sul”, salienta a pesquisadora.
Lilian Maia Leandro descreve que no Mioceno, a estrutura da crosta terrestre era diversa. O Rio Amazonas, por exemplo, corria em sentido contrário – de leste para oeste -, já que a Cordilheira dos Andes no Peru não era tão alta. Ela cita um exemplo doméstico para a compreensão do período.
“Pensa no ralo do banheiro. Quando se liga o chuveiro, a água escorre para o lugar mais baixo. E a região amazônica era mais baixa, ela era uma bacia. Esse desnível fazia com que, quando elevava o nível do mar com os degelos anuais, as geleiras descongelavam, o nível do mar aumentava e a água ia para a Amazônia”, explica Lilian.
Segundo ela, havia ali o sistema Pebas na Amazônia, o qual pode ser entendido como um mega pantanal que existia entre o Brasil, Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela. Era o lugar mais baixo da região, o que fazia com que essa água escorresse até a Amazônia com os organismos marinhos.
“Até a pesquisa, o pessoal só falava de hipóteses. Poderia ter vindo da costa do Peru, do Caribe venezuelano, pelas Guianas, pela foz do Rio Amazonas ou pela bacia do Paraná. Pela primeira vez, foi feito um trabalho em poços marinhos da mesma idade dos sedimentos da Amazônia. Ninguém tinha correlacionado todos esses fatores e a questão tectônica”, comenta a geóloga.
Ainda há muito para avançar em termos de pesquisas, já que a Amazônia é um território vasto para diferentes tipos de estudos. No entanto, esse primeiro passo pode abrir novas oportunidades de compreensão de sua biodiversidade. Lilian Maia Leandro cita por exemplo o caso dos botos e as arraias.
“A Amazônia por si só é um grande mistério. Os botos da Amazônia são bem parecidos com os golfinhos né, a gente tem também as arraias. Fora os microfósseis, os fósseis, os ostracodes, há também carapaças de moluscos que a gente encontra lá que seriam resquícios vindos do mar. Toda essa diversidade veio dessas mudanças paleoambientais da região amazônica”, finaliza.
Na canção “Sobradinho”, a dupla Sá e Guarabyra eternizou os versos
“E o sertão vai virar mar, dá no coração
O medo que algum dia o mar também vire sertão
Vai virar mar, dá no coração
O medo que algum dia o mar também vire sertão”
Certamente, eles ainda não sabiam que a Amazônia foi mar um dia.