Dizem que Musk ameaça a soberania nacional. Mas de qual nação falamos?

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Jornalistas e políticos encheram a boca para dizer que, ao confrontar Alexandre de Moraes e afirmar que não cumpriria as ordens judiciais emanadas do ministro, o americano de origem sul-africana Elon Musk havia ferido a soberania brasileira.

Na minha curiosidade antropológica a respeito do Brasil, a única que consigo manter, mesmo assim a duras penas, constato que o sentimento nacional, entre nós, é sempre reativo ao que é estrangeiro. Ele não existe quando o espelho somos nós mesmos.

A soberania interna do Brasil, por exemplo, é diariamente desafiada pelas facções criminosas que dominam os presídios, territórios urbanos e agora estendem os seus tentáculos à política.  Mas, como os facínoras são brasileiros, não há nenhum jornalista falar em ameaça à soberania do país.

O apoio do governo Lula a ditaduras, como as da Venezuela, Nicarágua, Cuba e Rússia, também atenta contra a soberania brasileira, uma vez que contraria os preceitos básicos da nossa Constituição democrática e dos outros poderes constituídos que, teoricamente, os têm como fundamentos.

A falta de água tratada e esgoto da qual padece metade da população é outro ponto que fere a nossa soberania, uma vez que contribui enormemente para enfraquecer a saúde e diminuir a expectativa de vida do povo brasileiro, em nome do qual o Estado exerce a sua autoridade tanto interna como externamente.

Por que o nosso sentimento nacional só se manifesta em reação ao que é estrangeiro? Há um forte componente de chauvinismo no fenômeno. Ou talvez só haja chauvinismo, esse sentimento patriótico desmesurado e, consequentemente, ridículo frente ao que é forasteiro.

O chauvinismo substitui o que deveria ser essencial: uma ideia de nação que nos congregasse acima das ideologias circunstanciais. Ninguém definiu melhor o que é nação do que o filósofo, escritor e historiador francês Ernest Renan, a quem Joaquim Nabuco dedicou um capítulo na sua autobiografia, Minha Formação, e que inspirou tantos pais brasileiros a dar nome aos seus filhos com o seu sobrenome. 

Em 1882, em uma conferência na Sorbonne, quando a universidade francesa ainda não homenageava gente inculta e de caráter duvidoso, Ernest Renan debruçou-se sobre a questão do que é uma nação.

A conferência é esplendorosa e se tornou um clássico sobre o tema. Transcrevo o parágrafo que condensa o conceito: 

“Uma nação é uma alma, um princípio espiritual. Duas coisas que, para dizer a verdade, são uma só, constituem esta alma, este princípio espiritual. Uma está no passado, a outra no presente. Uma delas é a posse conjunta de um rico legado de memórias; o outro é o consentimento atual, o desejo de viver juntos, o desejo de continuar a afirmar a herança que recebemos de forma indivisível. O homem, senhores, não se improvisa. A nação, tal como o indivíduo, é o culminar de uma longa história de esforços, sacrifícios e dedicação. O culto aos antepassados é o mais legítimo de todos; nossos ancestrais nos fizeram o que somos. Um passado heróico, grandes homens, glória (quero dizer glória real), este é o capital social no qual baseamos uma ideia nacional. Ter glórias comuns no passado, uma vontade comum no presente; ter feito grandes coisas juntos, querer fazer mais, estas são as condições essenciais para sermos um povo. Amamos na proporção dos sacrifícios que fizemos, dos males que sofremos. Amamos a casa que construímos e transmitimos. A canção espartana: ‘Nós somos o que você era; seremos o que vocês são’ é, na sua simplicidade, o hino abreviado de cada pátria.”

Os brasileiros estão muito longe, e não é de hoje, de querer fazer grandes coisas juntos e de querer fazer mais. Só nos resta o chauvinismo de achar que Elon Musk ameaça a nossa soberania e a nossa exótica democracia que admite medidas excepcionais sem se acreditar regime de exceção. Triste tribo, a nossa.

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