Foi a nossa amiga Sandra que reparou logo, mal leu a crónica de ontem sobre o “e já vais com sorte”, que faltava uma expressão ainda mais portuguesa: o “não digas que vais daqui”.
É uma expressão magnífica por ser manca. A cabeça estrangeira, ou desabituada do popular, pergunta logo: “Não digas que vais daqui… com quê… ou sem quê?”
A elipse é tão grávida que promete trigémeos. Mas a elipse só existe se quisermos. Aqui em Portugal, as elipses do solo (e do luar) são mais numerosas e bem mais interessantes do que os eclipses do sol (e da lua).
Consultadas as peritas do costume, dizem-me, de um lado, que a expressão é alentejana e, do outro, que, se não for, um dia há-de ser. Se esta explicação satisfizer, pois não diga o leitor que vai daqui, está bem?
Não há volta que dar: falar de expressões populares envolve sempre ensinar minuciosamente o padre-nosso ao vigário. E, por isso, aqui estou eu a explicar ao povo português que “não digas que vais daqui” é uma variante mais subtil e manhosa do “e já vais com sorte”.
A versão comprida, que seria muito mais chata, é: “Acabei de te dar uma coisa que toda a gente quer. Por amor de Deus, não digas a ninguém que fui eu que te dei! Porque senão tenho aí a populaça toda a bater à minha porta, de boca espumante e dedinho tremelicante, a ver se também têm direito a esta voluptuosa benesse”.
Se calhar, seria menos confuso dizermos “não digas que vens daqui”, ou mesmo “não digas que cá estiveste”. Mas não pode ser. Ele ainda lá está. Ainda vai sair de lá. Ainda vai ir. E daí o “vais” do “não digas que vais daqui”. Não digas que vais daqui, moço, para que as pessoas que se cruzem contigo não pensem que foi um simples mortal que te abençoou com uma oferenda tão grande.
É aqui que se esconde a ironia portuguesa, quando se farta de ouvir que está morta. É quando se oferece um tremoço ou um cartão-de-visita que se adopta a postura de um rajá a ofertar um colar de pérolas ao Vasco da Gama.
(Transcrito do jornal PÚBLICO)