São Paulo — Os indícios da infiltração do Primeiro Comando da Capital (PCC) no bilionário sistema de ônibus paulistano vêm de quase 25 anos e, nesta semana, voltaram à tona com a Operação Fim da Linha, que prendeu dirigentes de duas empresas do transporte público da cidade.
A mistura entre traficantes de drogas e operadores de transporte, porém, vêm de mais longe ainda, e tem origem na formação da rede de ônibus da maior cidade do país.
Entre os anos 1960 e 1990, a capital sofreu uma enorme expansão populacional, saltando de menos de 4 milhões de habitantes para mais de 10 milhões. Contudo, os novos bairros não tinham infraestrutura básica, como água, esgoto, coleta de lixo e, em especial, transporte público. Por isso, donos de Kombis viram uma chance de negócio: levar moradores desses locais para áreas com transporte estruturado. Eram os “perueiros”, por causa da gíria paulista para as vans, “peruas”.
Para se ter ideia, em 1982, na gestão de Antônio Curiati (prefeito biônico indicado pela ditadura militar), havia estimativa de 6 mil pessoas trabalhando como perueiros.
Regularização dos perueiros
Quando a democracia voltou e Luíza Erundina foi eleita, a Prefeitura tentou regularizar os perueiros. Em março de 1990, sua gestão criou quatro linhas ligando os extremos sul e leste aos bairros de Santo Amaro e Itaquera, respectivamente, e cadastrou motoristas para operá-las. Depois, expandiu o programa. Mas isso não acabou com os operadores clandestinos.
Já no início dos anos 2000, em Diadema, cidade vizinha da capital e próxima das represas da zona sul, um grupo começou a cobrar taxas de proteção dos perueiros clandestinos que operavam nas duas cidades, que chegavam a R$ 15 mil. Esse grupo tinha entre os integrantes, segundo o Ministério Público de São Paulo (MPSP), Antônio José Muller Júnior, o Granada, que era integrante do PCC, facção fundada em 1993 dentro do sistema prisional paulista.
O negócio dos ônibus se mostrou lucrativo, e associados à facção passaram a operar também na zona leste.
Naquele período, na gestão Marta Suplicy (PT), a Prefeitura empreendeu nova tentativa de acabar com os clandestinos e regularizar o sistema, e desta vez a medida deu certo. O secretário de Transportes da época, Jilmar Tatto, negociou a criação de cooperativas de perueiros, que teriam de abandonar as Kombis e operar micro-ônibus, e as cooperativas teriam contrato firmado com a Prefeitura, operando linhas com horários determinados de partidas em itinerários determinados pela São Paulo Transporte (SPTrans).
Essas linhas fariam um serviço complementar ao atendimento dos ônibus tradicionais, que ligam os bairros ao centro, operando linhas menores, entre bairros mais afastados e os terminais regionais.
PCC no volante
Para o Ministério Público, o PCC usou diversos métodos, da cooptação à ameaça, para assumir a presidência de parte dessas cooperativas. A Prefeitura, por sua vez, não adotou nenhuma medida efetiva para filtrar o ingresso de perueiros ligados ao tráfico de drogas, na regularização do sistema. Granada, por exemplo, obteve cargo de diretor da Transmetro, cooperativa que se transformou na Cooperpam.
O ex-secretário Jilmar Tatto chegou a ser alvo de um inquérito policial com outras sete pessoas, suspeitas de ligação com o crime organizado. Entretanto, a polícia não reuniu indícios suficientes para denunciá-lo à Justiça.
Expansão
Após a regularização, segundo o MPSP, os traficantes e assaltantes de banco filiados ao PCC passaram a ter segurança para investir nas cooperativas, mantendo ônibus tanto para arrecadar com serviço quanto para lavar dinheiro do tráfico e de outros crimes. Nesse esquema, motoristas de ônibus, que deveriam ser os verdadeiros cooperados, eram funcionários da facção e laranjas.
Uma das provas dessa prática foi uma correspondência, descoberta em maio de 2012, entre dois dos membros da chamada “Sintonia FinaL Geral”, o núcleo de comando do PCC, abaixo de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder máximo da organização.
Na carta, em meio a ordens que incluam até a determinação de um assassinato, há instruções para que Daniel Vinícius Canônico, o Cego, vendesse um micro-ônibus que mantinha na SPTrans, empresa municipal que administra o sistema na cidade, e repassasse o dinheiro para a facção. No lugar do veículo vendido, ele receberia um micro-ônibus novo de Roberto Soriano, o Tiriça, chefão do PCC.
Dias atuais
Após 2013, com os protestos contra o aumento de tarifas que paralisaram o país, a Prefeitura foi pressionada a rever o custo das passagens. Era a gestão do então prefeito Fernando Haddad (PT), atual ministro da Fazenda, e o secretário de Transportes era novamente Jilmar Tatto. Eles contrataram uma auditoria para tornar público todos os custos do transporte que apontou uma enorme confusão contábil nas contas das cooperativas e recomendou que a Prefeitura fizesse contrato com as empresas.
A ideia foi orientar que cooperativas se reorganizassem em empresas e disputassem a nova licitação que Haddad plenejava para o sistema — proposta que não prosperou após por decisões do Tribunal de Contas do Município (TCM) e da Justiça que favoreceram os empresários das viações de ônibus tradicionais, contrários à nova licitação.
As cooperativas, porém, fizeram a parte delas e se reorganizaram em empresas a partir de 2015. Os integrantes do PCC, por sua vez, chegaram a espancar e até matar antigos perueiros que eram contrários à forma como essa nova organização estava ocorrendo, segundo o Ministério Público.
A antiga Cooperativa Paulistana, que atuava na zona leste, por exemplo, estava se transformando na empresa Allianz (que não tinha nenhuma ligação com a famosa seguradora de origem alemã com o mesmo nome). Um dos perueiros contrários, Sérgio da Conceição Nobre de Oliveira, de 36 anos, que já tinha até contratado advogado para contestar a mudança, foi morto na porta da garagem da empresa em fevereiro daquele ano.
Uma testemunha do caso que seria ouvida pelo MPSP foi espancada na sequência, paralisando as investigações.
Já na zona sul, segundo o MPSP, para poder disputar os lotes mais vantajosos do sistema de ônibus, que precisavam de capital social maior, a Cooperpam, que se transformou na empresa Transwolff, recebeu um aporte de R$ 54 milhões de uma empresa que seria de fachada e teria levantado os recursos junto ao PCC.
O MPSP ainda mantém investigações sobre a infiltração da facção na rede de ônibus, e pretende ouvir durante a ação penal ajuizada na Justiça testemunhas como ex-secretário Jilmar Tatto e o presidente da Câmara Municipal, Milton Leite (União), que teve na Transwolff uma de suas bases eleitorais.