Há exatos dez anos, a radialista Lana Micol Cirino Fonseca, então coordenadora da Rádio Nacional do Alto Solimões, da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), foi assassinada em frente à casa do companheiro, o sargento Alan Bonfim Barros, em Tabatinga, no Amazonas. A cidade fica na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia. Lana tinha 30 anos de idade e foi enterrada em Manaus.
Para os familiares da radialista, o que ficou foram os sentimentos de revolta diante da incompetência e da falta de disposição da polícia para solucionar o caso, marcado, como tantos outros no Brasil, pela banalização das agressões e da morte violenta de mulheres. “Eu falei para o delegado: doutor, e aí, você não tem nada a me dizer sobre a minha irmã? Ele: depois que mataram sua irmã, mataram dez. Eu falei: tomara que a décima primeira não seja sua parente”, desabafou a instrutora de direção de veículos, Lia Rebeca Cirino Fonseca, irmã de Lana.
Saudade
A radialista Kátia Franco, que trabalhou com Lana, a descreve como uma “menina com espírito de adolescente, mas, ao mesmo tempo, uma mulher que buscava muito os direitos das mulheres”. Um dos sonhos da colega assassinada era a abertura de um centro de apoio a mulheres vítimas de violência, em Tabatinga. Ela já fazia questão de inserir debates e realizar entrevistas sobre o tema na rádio que coordenava. Outra bandeira de Lana era a causa indígena. O encantamento que tinha com a cultura de alguns povos originários causava, inclusive, estranhamento entre os familiares.
“Lana foi uma pessoa muito importante na minha vida, pela experiência que tinha no rádio, com o pai dela, que era um grande radialista. Ela me orientou muito sobre como trabalhar no rádio, e eu descobri esse amor pelo rádio” lembrou Kátia.
“Esse jeito dela, de menina, adolescente, mulher, fazia com que a gente conseguisse trabalhar de uma forma muito leve. Lana era isso. No seu sorriso, era uma mulher muito leve. No seu jeito de trabalhar, uma pessoa muito leve”, acrescentou.
Lana era descrita como uma profissional de excelência e muito dedicada ao seu ofício, no qual embarcou por influência do pai, também radialista. Trocava o português por línguas indígenas em suas transmissões no rádio e também estimulava indígenas a mostrar obras de sua autoria no festival de música promovido pela rádio.
Dar a notícia do assassinato de Lana na Rádio Nacional do Alto Solimões foi das tarefas mais árduas para Kátia e para a equipe que dividia os estúdios com a colega. Centenas de ouvintes que a admiravam foram para a frente do hospital em que foi atendida para aguardar informações sobre o caso.
“Muitas pessoas chorando. Muitas pessoas, naquele momento, sabendo o que tinha acontecido e como tinha acontecido. Foi um envolvimento muito grande. O sinal da rádio chegava, muitas pessoas das comunidades vieram para saber realmente o que tinha acontecido e acompanhar tudo”.
Segundo Kátia, o velório de Lana teve grandes filas para uma última despedida. Ao mesmo tempo, lamentou a dureza da realidade da região, onde a morte da colega não é um episódio fora da curva. “O fato em si, do assassinato, não foi algo tão indiferente à nossa realidade. É triste falar isso, mas já sabíamos de casos de homicídios envolvendo mulheres em [situação de] violência doméstica. Tanto que era, como disse, uma das lutas para a Lana, porque ela tinha conhecimento dessas situações e ela queria trabalhar alguns projetos que ela tinha, de combater isso”.
Relembre o caso
No momento do crime, o casal e a filha mais nova da comunicadora, de 7 anos, tomavam banho de piscina, diante do portão da residência. Dois homens chegaram em uma motocicleta e efetuaram os disparos. Lana foi atingida várias vezes.
Ela foi levada ao Hospital de Guarnição de Tabatinga pelo namorado, mas não resistiu aos ferimentos. Além da menina, deixou outro filho, de 11 anos. Este ano, eles completam 17 e 21 anos, respectivamente.
A Agência Brasil esteve no município, em fevereiro e março deste ano, para verificar se o caso andou na Justiça. Conforme relataram Lia e o pai de Lana, o dono de autoescola Antônio Moisés Fonseca, não houve nenhuma novidade na esfera judicial. O conjunto de provas, na avaliação do magistrado responsável, era insuficiente para incriminar e condenar o ex-marido da vítima, Edimar Ribeiro, à devida pena.
Edimar foi apontado como o mandante do crime e chegou a ficar detido preventivamente por 90 dias, mas conseguiu o direito de aguardar o julgamento em liberdade. A polícia precisaria refinar a investigação e apurar melhor os indícios e provas para elucidar o que aconteceu.
“O juiz devolveu o processo para a polícia. Disse que estava incompleto e não tinha condição. Eu fui lá falar com o juiz e ele disse: não posso fazer nada, está incompleto”, disse Fonseca. Ao longo de toda a entrevista, o pai da radialista parecia prestes a desabar, tamanho o carinho que tinha pela filha, sua companheira de todas as horas.
Lana já havia reagido às ameaças que recebeu de Edimar. Formalizou queixa à polícia, conseguiu uma medida protetiva contra o ex-marido, o que permitiu que tivesse relativa proteção. Por outro lado, não garantiu o fim das ameaças até meses antes de seu assassinato. Ele a agrediu enquanto eram casados, conforme ela mesma e parentes denunciaram às autoridades.
A atmosfera de mistério que permeia o caso permanece até hoje, já que houve ainda um segundo fato que chamou a atenção dos familiares da radialista e de todos que o continuaram acompanhando: Edimar foi assassinado por pistoleiros, quase sete anos depois da morte da ex-mulher, em 2 de março de 2020, durante um suposto assalto em Tabatinga. Segundo o pai de Lana, um dos homens que teriam participado da execução da radialista também foi morto, o que aumenta as indagações sobre as circunstâncias do homicídio da radialista.
“O que não mataram foi o que dirigiu [a motocicleta]”, ressaltou o pai de Lana, sinalizando que se sabe a autoria do crime, embora não tenha havido desfecho.
“A gente escuta várias histórias sobre o caso”, disse Lia. “Na verdade, é o que eu falei para [a imprensa]: aqui em Tabatinga, o pessoal é cego, mudo e surdo. Todo mundo sabe de tudo, mas ninguém vê, ninguém fala, ninguém escuta nada”, emendou ela, em relação à impunidade.
Na viagem da reportagem ao município, os familiares da empregada da EBC revelaram que o namorado de Lana, Alan Bonfim Barros, passou a ficar sob sua suspeita por conta do comportamento que adotou após a morte da radialista. A família de Lana reparava no comportamento “duvidoso” do sargento, que não parecia alguém que acabava de se perder um grande amor, e sim um homem preocupado em garantir que ficaria com os bens da companheira recém-falecida. A reportagem também tentou entrevista com Alan, mas ele se recusou a concedê-la.
Uma outra hipótese sobre o assassinato, que não diz respeito a feminicídio, é a de que Lana teria incomodado poderosos da região, devido às coberturas envolviam denúncias de crimes, e ao espaço que dava a povos indígenas. A primeira delegada que assumiu o caso, Fernanda Cavalcante da Costa, descartava essa possibilidade. A motivação seria outra. Ela entendia que Lana era uma figura querida na comunidade e que não teria provocado ninguém nesse contexto.
Em Atalaia do Norte, Tabatinga e Benjamin Constant, um aspecto que chama a atenção é a estrutura de serviços públicos disponíveis tanto para apuração como para julgamento dos crimes de Tabatinga e entorno. A rotatividade de magistrados é algo que provoca lentidão na tramitação de processos. A reportagem tentou falar com duas juízas que atuam nos municípios da região, mas ambas se recusaram a conceder entrevista.
Pelas estatísticas tabuladas da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas, em 2022, o estado teve 12 casos enquadrados como feminicídio, o maior patamar dos últimos quatro anos. Os anos de 2021 e 2023 somam dois casos cada, enquanto 2019 registrou apenas um, de Atalaia do Norte.