Argentinos em greve bradam que ‘pátria não se vende’ contra pauta liberal de Milei

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BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – A mesma praça onde, há apenas um mês e meio, milhares de apoiadores de Javier Milei ouviram seu discurso de posse foi tomada por manifestantes contra o presidente argentino nesta quarta-feira (24). Dezenas de imagens de leões, então, deram lugar a placas com os dizeres “a pátria não se vende”.

Uma multidão ocupou as ruas do centro de Buenos Aires que circundam o Congresso Nacional, onde, a partir da próxima terça (30), deputados deverão votar um pacotão de leis proposto pelo líder ultraliberal apelidado de “lei ônibus”. O projeto desregulamenta a economia e corta gastos públicos, abrindo caminho para a privatização de 40 empresas estatais.

O ato foi parte de uma greve geral que paralisou diversos setores no país, como serviços públicos, bancos, aeroportos e indústrias, principalmente das 12h à 0h —voos do Brasil foram cancelados. Enquanto a polícia municipal afirma que ele reuniu 130 mil pessoas, o governo cita 40 mil manifestantes e a CGT (Confederação Geral dos Trabalhadores), maior central sindical do país e organizadora do evento, 600 mil.

A paralisação foi convocada há semanas contra duas iniciativas do governo: a tal “lei ônibus” e um decreto presidencial com 366 artigos que impôs uma série de reformas liberais no país, cuja parte trabalhista foi suspensa pela Justiça.

Ao longo dos dias, centenas de outros grupos foram se somando. A partir das 12h desta quarta, a multidão —separada em colunas, como de praxe— marchou pela avenida de Maio, uma das principais da cidade, até a frente do Congresso, ocupando uma área de mais de um quilômetro.

Diversas ruas do entorno também foram tomadas por manifestantes, parte deles sem ligação com organizações.

As famosas Mães da Praça de Maio, movimento contra a violação de direitos humanos durante a ditadura militar argentina, também participaram com panos brancos na cabeça, e ao longo do ato houve referências ao ex-presidente Juan Domingo Perón (1895-1974) e à ex-primeira-dama Eva Perón (1919-1952).

A manifestação colocou mais uma vez à prova o “protocolo antipiquetes” criado por Milei e sua ministra da Segurança, Patricia Bullrich. Alvo de controvérsias, ele consiste em usar forças de segurança federais para impedir o bloqueio de vias durante protestos, estratégia recorrente no país.

Na prática, o tráfego de veículos ficou impedido em grande parte da região pela quantidade de pessoas reunidas. Barreiras de policiais conseguiram, no entanto, evitar que algumas ruas mais estreitas e grandes avenidas como a Nove de Julho fossem completamente bloqueadas.

“Milei disse que faria o ajuste contra a ‘casta’, mas a ‘casta’ continua muito bem e nós, trabalhadores, temos cada vez menos poder aquisitivo”, disse Marcelo Gomez, do sindicato de caminhoneiros, vestindo o crachá da empresa ao lado dos colegas. “Trabalhamos para comer, e não queremos só comer.”

Questionado sobre a responsabilidade do último governo do peronista Alberto Fernández na atual crise, ele respondeu que a culpa é de uma sucessão de governos, mas que “essa gente [do governo Milei] vem com uma receita do século passado, sempre com o ajuste para a classe trabalhadora”. “Em menos de um mês, cortaram nosso salário pela metade, em quatro anos vão nos deixar sem roupa”, disse.

Todos os preços estão em disparada desde dezembro na Argentina, quando o ultraliberal assumiu, desvalorizou a moeda local e acabou com os congelamentos impostos pela gestão anterior. A inflação mensal, que já estava em altíssimos 13% em novembro, dobrou para 26% no mês seguinte. Isso fez o consumo —que já vinha em queda— despencar no país.

“Os planos de saúde já anunciaram aumentos de 40% em janeiro e 30% em fevereiro, e não há nenhuma medida para amparar as pessoas. Vai ser um desastre”, protestou a artista visual Mara Cafaroni, 40. “O decreto e a ‘lei ônibus’ basicamente acabam com uma série de direitos sociais”, complementou sua amiga Fátima Bechi, 39, que marchava ao seu lado.

Milei argumenta que a situação deve melhorar em alguns meses se o Congresso aprovar suas reformas. Seu governo tem minimizado a paralisação: “Não há greve que nos detenha, não há ameaça que nos intimide”, escreveu sua ministra Bullrich em postagem no X, nesta quarta.

Ela acusou o movimento de ser orquestrado por “sindicalistas mafiosos, gestores da pobreza, juízes cúmplices e políticos corruptos” que estariam “defendendo seus privilégios, resistindo à mudança que a sociedade escolheu democraticamente e que o presidente lidera com determinação”.

A gestão também tem criticado sua convocação em tão pouco tempo de mandato. “Foi o anúncio de greve mais rápido da história da Argentina […] Não entendemos o que os faz dormir e o que os faz acordar”, afirmou o porta-voz Manuel Adorni na terça (23).

De fato, o último presidente a enfrentar grande resistência com pouco tempo de governo —três meses, naquele caso— foi Fernando de la Rúa, que acabou renunciando em 2001 em meio a uma das maiores crises econômicas e sociais da Argentina, segundo dados do Centro de Estudos para a Nova Maioria.

A cientista política Nayet Kademián, da Universidade Nacional de San Martín, chama a atenção para a ausência de lideranças claras de oposição a Milei até agora.

“Provavelmente será muito fácil para o presidente instalar na opinião pública que essa greve é um obstáculo à sua governabilidade, que ‘não o deixam governar’, enquanto não houver uma figura política que seja capaz de capitalizar os erros dessa gestão e se opor ao seu discurso”, afirma.

A manifestação no Congresso foi protagonizada por líderes da CGT, que discursaram em um palco montado em frente ao imponente edifício de Buenos Aires.

Pablo Moyano, líder dos caminhoneiros, pediu que a coalizão peronista União pela Pátria rejeite as reformas de Milei. “Estamos aqui para exigir dos deputados que fazem campanha cantando a marcha peronista, mas quando precisam rejeitar uma lei que vai contra os trabalhadores, escondem-se e temos que buscá-los em seus escritórios”, declarou.

Um dos únicos momentos de tensão registrados pela imprensa argentina ocorreu pela manhã, quando policiais tentaram impedir que uma grande concentração de manifestantes subisse a ponte Pueyrredón, um dos acessos ao sul da capital, para chegar ao Congresso. Ruas da região chegaram a ser bloqueadas, mas não houve confrontos.



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