No passado, dizia-se que o papel aceitava tudo. Dado que seu uso para disseminar informações era de vidro e se quebrou, são as redes sociais que hoje aceitam tudo, e sem limite. O papel enruga e amarelece com o passar do tempo. O brilho das nuvens é eterno como os diamantes.
Quem já se definiu como “um fodido, deputado do baixo clero, escrotizado dentro da Câmara, sacaneado, gozado, uma porra de um deputado”, pretende agora apresenta-se como um líder de oposição perseguido pela mais alta Corte de Justiça do seu país e carente de defesa, o pobrezinho.
Reivindica, como se o tivesse perdido, o direito a defender-se, e irá fazê-lo em praça pública na companhia de aliados que ainda acreditam na sua inocência, dos que almejam obter seu apoio, e dos devotos radicais, porém sinceros, que o elegeram presidente, mas que não bastaram para o reeleger.
É o que Bolsonaro fará na acolhedora Avenida Paulista de célebres multidões acostumadas a ouvi-lo e depois gritar: “Autorizo”. A ideia do ato lhe foi soprada por um grupo de amigos e aceita de imediato. As despesas serão pagas pelo pastor Silas Malafaia, feliz proprietário de uma igreja.
Não com o dízimo dos fiéis, segundo jura Malafaia, mas com dinheiro do seu bolso. Salve Deus, portanto, pela existência de pessoas generosas e desinteressadas como são esses pastores evangélicos capazes de assegurar um lugar no céu aos que começarem a pagar desde já a reserva.
Malafaia promete não repetir nada que lembre o que ele disse em 28 de novembro de 2022, quando a trama do golpe parecia avançar a galope:
“Senhor presidente Jair Messias Bolsonaro: o senhor tem poder de convocar as Forças Armadas pra botar ordem na bagunça que esse ditador [Alexandre de Moraes] fez. Se os militares não quiserem te obedecer, é Código Penal Militar, artigo 5º e o 319, são presos!”.
De sua parte, Bolsonaro promete não incorporar o espírito que na mesma Avenida Paulista, no 7 de setembro de 2021, o orientou a dizer fingindo espumar de ódio:
“Qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes, este presidente não mais cumprirá. A paciência do nosso povo já se esgotou. Ele tem tempo ainda de pedir o boné e ir cuidar da sua vida. Ele, para nós, não existe mais! Liberdade para os presos políticos! Fim da censura! Fim da perseguição àqueles conservadores, que pensam no Brasil”.
E disse mais:
“Ou esse ministro se enquadra, ou ele pede para sair. Sai, Alexandre de Moraes! Deixa de ser canalha!”
Àquela altura, Lula estava solto, mas Bolsonaro não o considerava imbatível, e caso se tornasse, o golpe seria a chave para roubar-lhe a vitória. O ex-presidente Michel Temer socorreu Bolsonaro e o convenceu a pedir desculpas a Moraes. Nascia, assim, o Jairzinho Paz e Amor, de vida breve.
Bolsonaro correrá um duplo risco no ato que convocou só para obter uma foto que possa mostrar ao mundo como prova de que segue popular, e por isso não deve ser tratado como “um fodido, deputado do baixo clero, escrotizado dentro da Câmara, sacaneado, gozado, uma porra de um deputado”
Se ressuscitar a versão dele próprio inspirada por Temer, frustrará seus seguidores que lhe darão as costas. Se corresponder aos anseios deles, Moraes baterá palmas e poderá decretar sua prisão preventiva. Se por acaso Bolsonaro pensa que , uma vez preso, acabará virando um mártir…
Por que não experimenta?