Cem anos de sabedoria (por Gustavo Krause)

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As promessas celebradas na passagem de ano são, em grande maioria, tentativas que vão dos cuidados com o corpo/saúde às mudanças no modo de viver e encarar com mais leveza um mundo desafiador da serenidade humana. Não faltam força de vontade e louváveis esforços.

De repente, a gente cai na armadilha do autoengano. Negar evidências contando mentirinhas do tipo vou me desligar alguns dias deste mundo louco, violento, beligerante, cruel, incendiário em todos os sentidos e, na fuga improvável, conviver com a família (neto nascido no dia 29/12), leituras ou releituras, instrutivas e religar o dínamo da esperança.

A rigor, esta é uma banda do mundo. A que dói. Mas a humanidade, graças à ciência, à tecnologia oferece, ainda que desigualmente, as novas oportunidades da outra face das crises. Tudo vai depender de escolhas das pessoas e dos que exercem o papel de lideranças nos diversos setores da vida social. Nas últimas três décadas, o saldo não é positivo e afeta todos nós.

Deixando o campo das abstrações e voltando ao meu pequeno e insignificante mundo, tentei seguir o conselho de Rita Levi-Montalcini (1909-2012), Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina (1986): “Dê vida aos seus dias, ao invés de dar dias à sua vida”.

Revisitei, para uma leitura atenta, reflexiva, a obra do admirável Edgar Morin (1921) que, ao completar cem anos, publicou uma preciosidade: Lições de um Século de Vida (Ed. Bertrand Brasil – Rio de Janeiro, 2021).

O preâmbulo é uma primorosa síntese do livro porque revela a grandeza humana do autor e sua autêntica modéstia: “Que fique bem claro: não dou lições a ninguém. Tento extrair lições de uma experiência centenária e secular de vida, e desejo que elas sejam úteis a cada um. Não só a quem queira refletir sobre sua própria vida, mas quem queira encontrar sua própria Via”.

Edgar Morin (pseudônimo de Edgar Nahoum de origem judaica) se autodefine como um “humanista regenerado” que jamais abandonou suas convicções universalistas, anticolonialista e a identidade “una e múltipla”. E complementa: “Ser humanista é também sentir que cada um de nós é um momento efêmero de uma aventura extraordinária que é a vida”.

Para ele, não basta “sobreviver” e sim enfrentar dificuldades e aproveitar oportunidades exercendo a arte do “saber viver”. Soube aproveitar os laços afetivos e intelectuais em várias comunidades e descreveu a relação entre o “estado poético e a felicidade” de forma sublime: “A poesia começa com a vida; ela eclode assim que aparece o que chamamos ‘alegria de viver’ aquela que o bebê rir como se chorasse diante do novo mundo apartado do conforto uterino”.

Como teórico do pensamento complexo, menciona Heráclito para expressar a essência das bipolaridades: “Concórdia e Discórdia são o pai e a mãe de todas as coisas; o que é contrário é útil e das lutas dos contrários nasce a harmonia”. E para não sucumbir ao desvario “toda paixão (homo demens) precisa ser vigiada pela razão e toda razão (homo sapiens), animada por uma paixão a começar pela paixão do conhecer”.

Por sua vez, a consciência política de Morin nasce e se fortalece a partir da origem judaica, “sou do povo maldito e não do povo eleito”, o que lhe fortaleceu a compaixão por todos os malditos, vencidos, subjugados e colonizados bem como consolidou as convicções universalistas do humanismo.

No capítulo “Não subestimar o erro”, o autor defende que “repensar” é um estado  permanente na vida das pessoas. Embora pacifista, foi um guerreiro na resistência francesa aos horrores do Nazismo; rejeitou firmemente ao Stalinismo que denominou “neototalitarismo”. Definitivamente desligado do Partido Comunista, tornou-se “alérgico” ao fanatismo, aos sectarismos e mentiras políticas.

Sua visão de esquerda, proclama, se nutre de quatro fontes: a Libertária (pleno desenvolvimento do indivíduo); Socialista (por uma sociedade melhor); Comunista (por uma sociedade fraterna); Ecológica (pela integração da Natureza no Humano e do Humano na Natureza).

Com uma extensa obra de mais de setenta livros, o teórico do conhecimento complexo enfatiza que o erro é inseparável do conhecimento e o espírito científico tem por base um conjunto de erros retificados. Defende um percurso na busca do saber: problematizar para duvidar e duvidar da dúvida; gerar o espirito crítico/autocrítico; contextualizar e reconhecer a complexidade.

No seu longo e permanente aprendizado, conclui: “Minha lição última, fruto do conjunto de todas as minhas experiências, está no círculo virtuoso no qual cooperam a razão aberta e a benevolência amorosa”.

 

Gustavo Krause foi ministro da Fazenda 

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