Estudo mostra que Comando Vermelho atua no garimpo e madeira ilegal na Amazônia | 18 Horas

AMAZONAS

A facção criminosa Comando Vermelho (CV) se estabeleceu como a principal operadora da rota do tráfico de drogas na Amazônia (Rota do Solimões) a partir de 2016, quando sua facção inimiga, o Primeiro Comando da Capital (PCC), dominou a rota do Paraguai. Após sete anos, a organização criminosa carioca aniquilou todos os seus rivais na região e hoje opera não só o transporte de cocaína, mas atua no garimpo de ouro e na comercialização de madeira ilegal.

Na semana do Natal, uma apreensão feita pelo Exército Brasileiro deu uma ideia da natureza das operações criminosas na região. Uma embarcação carregada com 750 kg de maconha tipo skank (mais forte que a média), avaliada em R$ 11,25 milhões, munições e combustível foi apreendida no rio Içá, na fronteira brasileira com a Colômbia e com o Peru. O rio é uma das portas de entrada da Rota do Solimões, que consiste no transporte de cocaína produzida em países andinos por rios e em aviões de pequeno porte pela Amazônia até o litoral brasileiro.

O estudo “Nexos de Crime-Drogas na Bacia Amazônica”, publicado em 2023 pelo UNODC, e divulgado pelo site Gazeta do Povo, o escritório da ONU para o combate aos crimes e às drogas, mostra como narcotraficantes passaram a se envolver com mineração e extração de madeira. De acordo com o documento, “há evidências crescentes de traficantes de drogas financiando e fornecendo apoio logístico para atividades ilegais nas operações de mineração de ouro em toda a região, incluindo em territórios protegidos, expandindo-se para a exploração de madeireira ilegal e o tráfico de vida selvagem (incluindo plantas, insetos e animais)”.

Os pesquisadores da UNODC ainda apontam que as embarcações usadas para transportar madeira ou minerais são também rotineiramente carregadas com cocaína escondida em remessas destinadas a mercados estrangeiros. “Esses tipos de atividades ilícitas são frequentemente acompanhados por crimes convergentes, que vão desde suborno, extorsão, fraude e lavagem de dinheiro, a homicídio, agressão violenta, violência sexual e violência forçada”.

Para atuar nessas áreas os traficantes do sudeste se aliaram a quadrilhas locais. O Comando Vermelho atua principalmente no Estado do Amazonas e o Primeiro Comando da Capital tem operações em Roraima e Rondônia.

Segundo Tássio Franchi, historiador e especialista em fronteiras, o tráfico de drogas realmente deixou de ser único ilícito praticado pelo CV no Norte do país. “Na última década, essas facções criminosas descobriram o garimpo ilegal”, observa o pesquisador.

Franchi é coordenador do projeto de pesquisa acadêmica Defesa Nacional, Fronteiras e Migrações (PROCAD Defesa – MD/CAPES), financiado pelo Ministério da Defesa e que, há quatro anos, pesquisa os crimes transnacionais nas fronteiras do Brasil, dentre outros temas.

Ele explica ainda que a “taxa que se consegue lavando o ativo da cocaína com ouro é muito melhor do que qualquer outra atividade com que se lave o dinheiro”.

Brasil, Colômbia e Peru são os países que mais se destacam na produção de ouro na América do Sul, segundo o estudo “Soberania e crimes ambientais na Amazônia: uma oportunidade para o Brasil atuar como líder regional?”, de autoria de Franchi e publicado na revista Diálogos Soberania e Clima.

Juntos, eles responderam por 258,5 toneladas das cerca de 373 toneladas de ouro exportado pela região em 2020. Canadá, Suíça e Estados Unidos são os principais compradores, respondendo pela importação de, aproximadamente, 247 toneladas no mesmo ano. Já em 2022, eles foram responsáveis pela importação de 412,5 das 567,6 toneladas de ouro exportadas pelos países amazônicos, de acordo com dados das Nações Unidas (Comtrade 2020 e 2022).

Brechas na legislação fazem com que seja relativamente fácil legalizar e exportar ouro extraído ilegalmente de garimpos na Amazônia. Assim, ao operar na região, o CV e outras facções brasileiras descobriram que a comercialização do ouro facilita a lavagem de dinheiro do tráfico de cocaína.

Tássio Franchi afirma que o comércio ilegal de ouro é uma das formas mais simples de lavar o dinheiro do tráfico e que, inclusive, grupos criminosos de outros países se utilizam da mesma tática. Tanto garimpos legais quanto ilegais participam do esquema, pois não há um sistema robusto de rastreamento do metal precioso no país. O especialista explica que, em alguns casos, os traficantes de drogas chegaram a assumir o total controle de minas de ouro.

A rota da Solimões vem também crescendo de importância para o crime organizado por causa de um aumento mundial na demanda por cocaína, que teria ocorrido a partir da pandemia de Covid-19.

O crescimento no consumo e, portanto, na oferta de drogas, foi reportado pelo Relatório Mundial sobre Drogas de 2023, publicado pela Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC). Em 2021, o consumo de entorpecentes cresceu 23% em todo o mundo, na comparação com 2011, chegando a 296 milhões de pessoas. Em 2020, também segundo dados da UNODC, o aumento foi de 26% em relação aos dez anos anteriores.

O ano de 2020, viu um recorde histórico na produção mundial de cocaína, quando foram produzidas 1.982 toneladas, segundo o Relatório Global sobre a Cocaína de 2023, da UNODC. Franchi afirma que, apesar do crescimento constante nos últimos anos, “houve um aumento do consumo, principalmente após a pandemia. E onde há demanda, há oferta”, explica o especialista.

Na Amazônia, o caminho para escoamento do ouro e da madeira ilegais, bem como de drogas, é o mesmo. A droga produzida em países como Peru e Colômbia são transportadas pelos rios amazônicos, no trajeto que ficou conhecido como Rota do Solimões. A outra saída seria a costa peruana, mas, para tanto, é preciso atravessar os Andes e enviar a droga pelo Oceano Pacífico.

Deste modo, a droga que sai desses países sul-americanos pelo com destino à Europa segue pelo Rio Solimões até Manaus ou até portos que ficam na Foz do rio Amazonas, como os de Macapá e Belém. De lá, a droga segue para o litoral do Nordeste e para o Sudeste. Uma parte da cocaína é destinada ao consumo de dentro do Brasil. Mas os maiores lucros dos traficantes são a exportação do entorpecente em larga escala por meio de navios para a Europa e para a África.

Como a Rota do Solimões é todo feita por meio dos rios que entremeiam a selva, é necessário que o trajeto seja realizado por pessoas experientes, com conhecimento da geografia e hidrografia locais. Ou ainda por meio de pilotos dispostos a pousar pequenas aeronaves em pistas clandestinas no meio da selva. A convergência de todos esses fatores fez com que o CV se aliasse a criminosos da região que se especializaram em garimpo e extração ilegal de madeira.

A vigilância das áreas de fronteira da Amazônia é responsabilidade da Polícia Federal, das polícias militares e das Forças Armadas. O Exército atua com poder de polícia da linha de fronteira até 150 quilômetros adentro do território brasileiro. Na região amazônica a faixa fronteiriça com Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela e Guiana tem 9.762 quilômetros de extensão. A área patrulhada pelo Exército é de aproximadamente 800.000 km².

No ano de 2023, o Comando Militar da Amazônia, que atua nos Estados do Acre, do Amazonas, de Rondônia e de Roraima, apreendeu 1.644 kg de drogas e 25 toneladas de minérios de extração ilegal, um total de R$ 167 milhões.

No entanto, o isolamento de diversas comunidades ribeirinhas e o difícil acesso a áreas de fronteira, somados à permeabilidade da fronteira e a consequente ampliação da abrangência dos grupos criminosos, dificulta o combate a essas atividades e a seu rastro violento.

Como o Comando Vermelho foi parar na Amazônia?

O procurador do Ministério Público de São Paulo (MPSP) Marcio Sergio Christino afirma que o CV precisou migrar para a região norte do país quando o PCC dominou do tráfico da cocaína produzida na Bolívia, que entra no Brasil pela rota do para Paraguai a partir de 2016.

“Comprar a droga boliviana das mãos do PCC não era uma opção para o CV, que ficaria submetido à facção paulista caso isso acontecesse. Então, a opção foi se aliar aos produtores peruanos pela Rota do Solimões, no norte do país”, afirmou Christino, que foi um dos primeiros membros do MP a investigar o PCC no Brasil.

O analista Franchi observa que esse rearranjo ocorreu a partir no momento em que estavam sendo firmados os acordos de paz entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc, e o governo colombiano, na década passada. Tradicionalmente ligadas ao tráfico de drogas e outros ilícitos na região da Amazônia Colombiana, algumas lideranças das Farc não aderiram aos tratados e, dessa forma, buscaram se reestruturar, o que levou a toda uma reorganização do tráfico e do crime na América do Sul, incluindo o Brasil.

Em 2016, ano em que essa reestruturação teve início, um evento consolidou a primazia do PCC junto aos produtores de cocaína da Bolívia. A droga dos produtores bolivianos é escoada pela chamada Rota Caipira, que sai do país, majoritariamente por via terrestre, passa pelo Paraguai e então entra no Brasil. À época, o líder criminoso Jorge Rafaat Toumani, de 56 anos, era conhecido como o “Rei da Fronteira” pois dominava a logística do tráfico na divisa entre Paraguai e Brasil.

No dia 15 de junho de 2016, quando saía de seu escritório na cidade de Pedro Juan Caballero, que faz fronteira com Ponta Porã (MS), ele sofreu uma emboscada que lhe custou a vida. Após parar em um semáforo, o jipe Hummer de Rafaat foi bloqueado por outro veículo que abriu fogo, rompendo a blindagem e matando o criminoso. O carro responsável pelos disparos, mais de 400 no total, estava equipado com uma metralhadora pesada de calibre .50, capaz de perfurar blindagem.

Segundo as autoridades paraguaias, a operação envolveu cerca de 30 outros carros, ocupados por cerca de três ou quatro criminosos cada. O tamanho da emboscada não possibilitou ação do aparato de defesa de Rafaat, que era escoltado por dois outros veículos. Seus seguranças trocaram tiros com os atacantes, mas tiveram que fugir.

À época, o comando da operação foi imputado por investigadores, inclusive da Polícia Federal brasileira, ao PCC.

A partir da morte de Rafaat, foi consolidada a parceria entre PCC e os produtores bolivianos para realizar o tráfico na fronteira centro-sul do Brasil, via Paraguai. A droga que chega ao Brasil por essa via é distribuída nos pontos de venda do PCC em todo o país e também é enviada pela facção para a África e a Europa pelos portos do Sul e Sudeste.

Com o acesso fechado para a droga produzida na Bolívia, a saída encontrada pelo CV foi migrar para o norte do país, trazendo a droga produzida no Peru e na Colômbia. E o principal ponto de entrada desses entorpecentes é a tríplice fronteira em Tabatinga, onde se inicia a Rota do Solimões. Deste modo, o CV pode garantir seu abastecimento e escapar do domínio do PCC na Rota Caipira (do Paraguai). No entanto, para conquistar o domínio de toda essa logística, a facção precisou se associar ou guerrear e eliminar grupos criminosos locais, como aconteceu com a Família do Norte (FN).

Após o assassinato de Rafaat, o CV também viu seus “acordos de conveniência”, que garantiam uma “convivência pacífica” com o PCC, serem rompidos. Forçado a migrar para o Norte e Nordeste o CV acabou entando em choque com a facção local que dominava a criminalidade no Amazonas, a Família do Norte (FDN).

Guerras em presídios, ataques e retaliações nas ruas entre os dois grupos se acentuaram a partir dos anos de 2016 e 2017. O aumento da taxa de homicídios no Amazonas oferece uma ideia da letalidade dos conflitos gerados. Entre 2016 e 2021, houve crescimento de 17,1% na taxa de homicídios por cem mil habitantes, que saiu de 36,3 e chegou a 42,5 no final do período analisado. Os dados são do Atlas da Violência 2023, lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Mas foi somente em 2020 que o CV conseguiu estabelecer seu domínio no Amazonas, suplantando a FDN. Em fevereiro daquele ano, o assassinato de Diego Lopes Linhares, o “Baixinho”, líder da Família do Norte em Manaus, foi um ponto chave para a consolidação do CV no Estado.

O traficante foi baleado dentro de um carro com seis tiros por dois homens em uma motocicleta. Resgatado com vida, ele acabou morrendo em decorrência dos ferimentos em um hospital de Manaus. No muro ao lado do local onde o crime ocorreu, a sigla CV foi pichada em vermelho.

Segundo registros de jornais manauaras, na noite em que o crime foi cometido, houve queima de fogos de artifício nos bairros comandados pelo CV. Deste modo, assim como o assassinato de Rafaat consolidou o domínio do PCC para o tráfico da cocaína que vem da Bolívia, passando pelo Paraguai, o de Baixinho marcou o ponto em que o Comando Vermelho assumiu o controle do tráfico em Manaus e, consequentemente, na Rota do Solimões.

Esse arranjo do crime, com o PCC dominando a Rota Caipira e o CV a do Solimões, trouxe uma certa estabilidade na relação entre os dois grupos criminosos. Mas ele é reflexo da incapacidade dos governos dos Estados e da União de desmantelar as organizações ou ao menos limitar suas atuações criminosas.

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