O governo Jair Bolsonaro pagou R$ 4,4 milhões para enviar ao Território Yanomami alimentos que não são consumidos pelos indígenas, durante uma crise humanitária. As informações são do jornal Estadão. Desprezando recomendação técnica, a Funai assinou o contrato milionário para comprar cestas básicas contendo sardinha e linguiça calabresa. O peixe enlatado e o embutido não fazem parte da dieta local. Também não há registros de que os produtos foram entregues integralmente.
A área técnica já havia alertado o governo e o Ministério Público a respeito dos hábitos alimentares dos indígenas. “Os yanomamis não comem sardinha nem calabresa”, informou a coordenadora da Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami, Elayne Rodrigues Maciel, responsável pelo órgão da Funai com atribuição exclusiva sobre a Terra Indígena Yanomami, em depoimento ao MP.
Na ação que ouviu a servidora, de 2021, o MP pediu a condenação da União para considerar estudos antropológicos e nutricionais na composição das cestas. A Justiça acatou o pedido. O Estadão apurou que, mesmo depois da condenação, o governo Bolsonaro não só voltou a adquirir os alimentos como assinou a maior compra já realizada para a terra indígena de linguiça e sardinha em lata.
Conforme o Estadão revelou ontem, a Funai sob o governo Bolsonaro também comprou 19 toneladas de bisteca para enviar ao Vale do Javari (AM), mas a carne congelada não chegou às aldeias. Os contratos seguem em vigor no governo Luiz Inácio Lula da Silva.
Procurada, a Funai disse que irá avaliar as compras de bisteca, mas não comentou a compra de sardinha e calabresa. O delegado Marcelo Xavier, presidente da Funai no governo Bolsonaro, não se manifestou.
Campeã nacional
A empresa contratada para vender ao governo linguiça e sardinha enlatada foi aberta em 2020, apenas dois meses antes da assinatura do primeiro contrato. Com sede em Boa Vista, a H. S. Neves Junior rapidamente se tornou a campeã nacional em vendas sem licitação para a Funai na gestão Bolsonaro.
Helvercio Sevalho Neves Junior, de 26 anos, se apresenta como dono da empresa. Em janeiro de 2023, três anos depois de abrir a firma, ele teve que devolver R$ 3 mil para a União de auxílio emergencial que solicitou indevidamente durante a pandemia da covid-19. O benefício foi criado para atender pessoas desempregadas e trabalhadores informais, que ficaram sem renda e precisavam ficar em casa. Com uma empresa faturando milhões do governo, ele recebeu o pagamento de forma irregular.
Na Receita Federal, a firma de Helvercio declara que vende carne, automóveis, roupas e bicicletas. Em dois anos, a empresa se especializou em contratos com as Forças Armadas e com o governo de Roraima. Sob a gestão de Antonio Denarium (PP), o Estado fechou contratos de R$ 188 milhões com a H. S. Neves Junior. As Forças Armadas, por sua vez, acertaram compras que, somadas, totalizam R$ 586 mil.
Governo usou pandemia de covid-19 para fechar contratos milionários sem licitação, a pretexto de fornecer cestas básicas aos povos originários. Na foto, indígenas durante o Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, em abril.
Entre todos os territórios indígenas do País, a Terra Yanomami foi onde o governo federal mais despendeu recursos, ao longo de quatro anos, para comprar alimentos. Os gastos chegaram a R$ 7,8 milhões.
Mesmo assim, centenas de crianças indígenas morreram, vítimas de desnutrição. Imagens da tragédia circularam pelo mundo, fazendo o governo Lula decretar emergência em saúde pública, no dia 20 de janeiro, “diante da necessidade de combate à desassistência sanitária dos povos que vivem no território yanomami”.
Desperdício
Líderes yanomamis apontam o desperdício de dinheiro com cestas básicas não consumidas, enquanto demandas urgentes por atendimento médico, socorro a crianças desnutridas e expulsão de garimpeiros ilegais na região não eram atendidas. “Os yanomamis não comem sardinha, não comem calabresa. Então, eles realmente jogavam fora, porque isso não é suficiente. Isso não mata a fome”, afirmou o vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, Dário Kopenawa, representante das comunidades que vivem no território.
Os indígenas relatam que as cestas básicas “caíam do céu”, trazidas por aviões, e vários alimentos estragavam assim que chegavam ao chão. A sardinha e a calabresa que sobravam, por outro lado, não eram consumidas e acabavam no lixo. “Não nos consultaram sobre o envio desses alimentos. Foi uma grande surpresa para nós. Nosso objetivo era combater as doenças e expulsar os invasores”, disse Kopenawa.
Consumir alimentos que não fazem parte da cultura tradicional pode comprometer ainda mais a saúde dos yanomamis. Para o MP, alimentos como sardinha e calabresa “podem gerar doenças e hábitos alimentares ruins, que comprometem a aceitação dos alimentos saudáveis e tradicionais produzidos localmente.”
‘Competência’
Os contratos para compra do enlatado e embutido foram assinados por Ednaldo Barbosa de Araújo, que se apresenta como procurador da empresa de Boa Vista. Sobre a firma ter conseguido fechar o maior contrato da Funai com apenas dois meses de existência, disse que se trata de “competência”.
“Isso é apenas competência. Se eu abrir uma empresa na segunda-feira e, na terça, tiver uma licitação de R$ 100 milhões, não há impedimento nenhum”, afirmou Araújo ao Estadão. Ele responsabilizou a Funai pela escolha de sardinha enlatada para compor a cesta básica.
Para Araújo, não há nada estranho no fato de a firma estar em nome de um jovem de 26 anos, o empresário Helvercio, e já ter faturado mais de R$ 100 milhões com o poder público em pouco tempo de funcionamento. “Quer dizer que a pessoa tem de estar velha para ter empresa?”, questionou.