O plano e o maestro (por Gustavo Krause)

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Milhões de brasileiros nascidos em meados da década 80 não têm a menor ideia do que é viver sob o descontrole inflacionário da economia: um tormento fustigado pela sensação de incerteza de cada dia. Um dos alarmes  inesquecíveis era o matraquear da etiquetagem, remarcando diariamente os preços  das mercadorias nas prateleiras dos supermercados.

O som deixava a mensagem sinistra: aperta o cinto, senão o salário não chega ao fim do mês. A inflação é uma doença que contagia, enfraquece o tecido social e alimenta a cultura da razão cínica. A história acertou em cheio: 80 foi uma década perdida, ainda assim, se consumou a transição política com a vigência da Constituição, ratificada pela eleição presidencial e a tradição de consagrar o populismo salvador. Deu no impeachment.

“A década perdida” aprofundou a turbulência. A jovem democracia aguentou o tranco e, no período de 1980-1994, os dados assustam: 5 Presidentes da República, 15 ministros da fazenda (entre eles, brevemente, o autor), 14 presidentes de Banco Central, 6 planos de estabilização e um confisco, 6 moedas, 13 políticas salariais, 17 regras de câmbio, 3 tablitas, 53 medidas de controle, 18 anúncios de  corte de gastos 720% de inflação média anual.

Porém, a crise foi o prenúncio de uma grande transformação. Há exatos 30 anos, a MP 434 de 27 fevereiro de 1994 do governo Itamar Franco, por proposta do então Ministro da Fazenda e, posteriormente eleito e reeleito Presidente da República (1 de janeiro de 1995 – 1 de janeiro de 2003) instituiu a URV Unidade Real de Valor, um dos três pilares do plano de estabilização da moeda, o Real, que entrou em vigor em 1 de julho de 1994

Letras mágicas? Fórmula salvadora? Uma quase moeda, uma unidade de conta que, atendendo ao princípio da neutralidade distributiva, convertia os salários pela sua média real dos quatro meses anteriores à introdução da nova moeda. Ou seja, a URV ao tempo em que envelhecia, absorvia o cruzeiro o que tornaria saudável o meio de pagamento do País. Tudo sem sustos, congelamentos e quebra de contratos.

Para a complexa e engenhosa formulação, FHC montou uma equipe (não farei referências pessoais para não ser injusto e enfatizar a construção coletiva da reforma) com atributos fundamentais para vencer o desafio: densidade intelectual, sólida formação acadêmica, comprovada experiência profissional, notório espírito público, personalidades com firmes convicções teóricas, capazes, no entanto, de buscar soluções consensuais, inovadores e viáveis.

Os mais insuspeitos relatos e consistentes testemunhos ressaltam a compreensão de todos que a nossa história, generosamente, concedia  oportunidade aos participantes de inscrever suas contribuições para uma profunda transformação da sociedade e se ombrear às nações modernas.

E assim foi. Ao longo dos dois mandatos, é possível enumerar notáveis transformações: a estabilização dos preços (moeda forte e os alicerces de uma cultura de estabilidade), retomada do crescimento, renegociação da dívida externa, lei de responsabilidade fiscal, redefinição do papel do Estado na economia e modernização da gestão pública, saneamento do sistema financeiro, autonomia operacional do Banco Central, recuperação do poder de compra dos salários, ampliação da escolaridade, fortalecimento do sistema de saúde, introdução dos programas de transferência condicionada de rendas.

Externamente, o Plano Real sofreu os efeitos de grandes crises internacionais, México, Tigres Asiáticos e Rússia, eventos que ameaçaram gravemente não somente o balanço de pagamentos como apontou na direção de uma reformulação na condução da política econômica o que originou o Tripé Macroeconômico (metas fiscais, cambio flutuante e metas de inflação).

Na verdade, o Plano Real foi muito além da estabilidade. Operou mudanças estruturais e deixou uma mensagem para um país que pretende ser relevante: é preciso reformar e reformar. Hoje e sempre. Neste sentido, mais que um plano bem elaborado, foi necessário um ator indispensável: o Maestro.

No caso, o Maestro foi o Presidente Fernando Henrique Cardoso, um democrata na essência, pensador por ofício, uma grande liderança política por vocação com visão  estratégica do Brasil e do mundo globalizado. Clarividente, teve a sabedoria de harmonizar a talentosa orquestra;  articular o saber técnico com sabedoria política, imune aos persistentes vícios do patrimonialismo e do corporativismo. Como impecável regente, explorou sinergias e virtuoses, na incessante busca de caminhos e rumos para um Brasil desenvolvido e justo.

Com a insuperável capacidade conceituar, o genial Mario Henrique Simonsen (1935-1997) na Exame (edição especial) de 16-3-1994, ao escrever sobre o Plano Real e os riscos dos fracassos anteriores, foi certeiro no título do artigo: “Desta vez, existe a âncora do bom senso”.

 

 Gustavo Krause foi ministro da Fazenda 

https:metropoles

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