“Sabes, é que há 50 anos não podias andar aqui, no meio da avenida, com um cravo na mão”. Francisco, de 11 anos, ouvia com toda a atenção as palavras claras e pausadas do pai, Fernando Rodrigues, 54, que, com uma mão em cima do ombro do rapazito sardento e de óculos de massa, fazia o enquadramento lógico daquela romaria a que se juntaram, a meio da tarde desta quinta-feira, como tantos milhares de outras pessoas. Num momento de grande emotividade, cantou-se pela liberdade individual e colectiva, esconjuraram-se todos os que defendem o oposto.
Fernando, trabalhador de uma multinacional do ramo automóvel, nunca antes desfilara pela Avenida da Liberdade para assinalar o 25 de Abril. Mas, este ano, mudou de ideias, porque sentiu que a ocasião lhe pedia. “Há uns ventos menos favoráveis a pairar no ar. Começamos agora a ouvir falar de família e pátria, outra vez. É estranho quando isso acontece”, afirma. Por temer pelo futuro colectivo, quis trazer também o filho. Também para que sentisse a alegria da liberdade, de poder falar sem medo.
As preocupações de Fernando sintetizam, em grande medida, o espírito de imensa mole humana que se uniu para descer a principal avenida da capital e, em uníssono, gritar, alto e bom som, “25 de Abril sempre! Fascismo nunca mais!”. Mas também cantar Grândola, Vila Morena, de José Afonso, outras canções associadas ao imaginário popular como pertencentes ao ideário da “revolução dos cravos”, mas também o hino nacional.
Não que tal destoasse de todas as outras 49 prévias celebrações do aniversário do derrube da ditadura do Estado Novo, em 25 de Abril de 1974. A diferença foi que, este ano, toda essa espécie de liturgia cívica ganhou novo enlevo, em consequência do contexto político-partidário relacionado com a forte presença de um partido de direita radical populista, o Chega na Assembleia da República, em resultado das eleições de 10 de março.
Os cinquenta deputados desse partido funcionaram, então, como uma sombra negra a pairar sobre a celebração dos 50 anos da democracia. Uma espécie de rima indesejada a impelir muita gente a sair de casa e a encher muitas ruas do país e, claro, a Avenida da Liberdade. Foi o caso de João Graça, 40 anos, médico e músico, que, pelas 14h, uma antes do início oficial do desfile, já aguardava, junto à estátua do Marquês de Pombal, e com indisfarçável expectativa, o que aí viria.
“Há um imenso simbolismo nesta ocasião, não apenas por serem os 50 anos do 25 de Abril, mas, mais ainda, pelo que estamos a viver. Sentimos que a democracia pode estar em risco, com a ascensão da extrema-direita”, diz, num plural a incluir não apenas mulher, Catarina, mas também a filha Clara, de quatro anos, e um grupo de amigos. Com eles, fez uma tarja onde se podia ler “É urgente o amor”. Ao PÚBLICO explica a razão de ser: “Acredito que o amor e a liberdade são sempre mais fortes que o ódio e o medo.” Por acharem o mesmo, muitos outros aderiram este ano a esta festa comunal com redobrado significado.
Foi o caso de Iris Samissone, 32 anos, que, juntamente com o companheiro, Tiago Ramos, 34, e a filha, Glória, de quatro anos, vieram de Alhandra, no concelho de Vila Franca de Xira para se juntarem, também eles pela primeira vez, ao cortejo de celebração do meio século da revolução de Abril. “Depois do que aconteceu nas últimas eleições, só podia fazer sentido estar aqui presente. É inegável o que se está a passar”, afirma, emotiva, já perto da Praça dos Restauradores, após ter gritado “fascismo nunca mais!” num dos muitos apelos colectivos feitos durante o desfile.
Um pouco mais acima, na extremidade do passeio, enquanto assistia à incessante torrente humana que vogava pela avenida, Nina Ramos, 49, mostrava um cartaz onde se podia ler, de um lado, “Otero, facho, fica tu com o tacho”, e, do outro, “Nós não somos o ventre da Nação!”. Uma alusão às recentes palavras do constitucionalista Paulo Otero sobre o papel da mulher, na apresentação do livro Identidade e Família, e segundo o qual a mesma deveria assumir, sobretudo, o papel de “dona de casa”.
“Tínhamos de vir para a rua. Isto está muito perigoso, estamos a assistir ao regresso de ideias perigosas, como a de uma masculinidade que tenta oprimir”, afirmou a produtora teatral, que se fazia acompanhar de Rita Afonso, a filha de 17 anos. Também a ela a empunhar um cartaz onde escreveu “Fascismo nunca mais”. Tal como a mãe, diz que sentiu necessidade de vir “porque estas ideias estão a voltar, como uma bola de neve, e, às vezes, de pessoas de quem nem imaginaríamos”.
Já no Rossio, Andreia Brotas, 73, confessa o mesmo tipo de preocupações. Em 25 de Abril de 1974, tinha 23. Lembra-se de ter vivido a ocasião “com muita alegria, com muita euforia” e sente que o país mudou muito, desde então. Mas não se sente satisfeita com o estado do país. Não apenas pela “muito preocupante” ascensão da extrema-direita, mas também porque “há ainda muita coisa por conquistar na democracia, como a habitação, a educação ou saúde”. No fundo, reivindicações semelhantes àquelas a que aspiravam os que acordaram, há meio século, para o dia inicial inteiro e limpo do poema de Sophia de Mello Breyner Andresen.