A estiagem severa castiga a Amazônia com intensidade considerável pela quarta vez desde o ano 2000. Antes da seca de 2023, o bioma e seus moradores foram atingidos pelas secas de 2005, 2010 e 2015/2016. Em 2020, a região sul da floresta também sofreu com os efeitos da falta de chuva, assim como o Pantanal. Assim, o que se vê neste ano na Amazônia não pode ser dissociado do que veio antes.
De acordo com pesquisa publicada na revista científica PNAS (The Proceedings of the National Academy of Sciences), as secas recorrentes aumentam o risco de eventos em cascata ao ultrapassar as capacidades adaptativas da floresta. Segundo o estudo, as regiões sul e sudeste amazônicas, as mais afetadas pela ação humana, são também as que sofrerão os maiores impactos e riscos de savanização.
“Em 15 anos, tivemos três secas. Era esperado que ocorresse uma assim a cada cem anos”, diz Henrique Barbosa, professor da Universidade de Maryland, Baltimore County, nos Estados Unidos, e um dos autores da pesquisa.
A floresta amazônica recicla a umidade que vem do oceano e produz até 50% das suas próprias chuvas. Todo o bioma está interligado nesse sistema, o que significa que os danos numa região se espalham para as áreas vizinhas.
Em um processo cada vez mais frequente – a estiagem atual é a quarta que atinge a região com intensidade desde o ano 2000 -, as mudanças climáticas trazem um novo período semelhante, novos incêndios surgem, a pluviosidade se altera, a recomposição da vegetação é afetada e a resistência da gigante verde vai sendo minada.
Os efeitos da atual falta de chuva, impulsionados pelo fenômeno El Niño, ainda vão permanecer na Floresta Amazônica por muito tempo. Pesquisadores ouvidos pelo Estadão afirmam que a ação humana, as mudanças climáticas e os eventos extremos colocam a resiliência do bioma em xeque.
Segundo a pesquisa, que desenvolveu um modelo matemático, esse sistema será fortemente afetado por secas mais frequentes, conforme as previsões de tendências do aquecimento global – que já altera de forma quantificável os padrões de precipitação e a duração da estação seca. A estimativa do estudo é que os danos globais causados por um evento extremo como o atual possam aumentar em até um terço.
“A chuva no sul da floresta depende do que acontece no norte”, afirma Barbosa. “Se você perde um pedaço da Amazônia, por desmatamento, mudanças climáticas, o que for, isso irá afetar outras regiões do bioma.”
É como um efeito dominó. A seca forte vem, encontra a floresta já desmatada, a deixa mais suscetível ao fogo, diminui o processo de evapotranspiração responsável por quase 50% da água sobre a Amazônia, reduz as chuvas que se deslocariam para outros pontos e fragiliza ainda mais o bioma.
A superfície da cobertura de água no Estado do Amazonas atingiu sua menor extensão desde 2018, apontam estudos científicos.
Alerta feito pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), unidade de pesquisa vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, aponta que a seca na Amazônia deve durar pelo menos até dezembro, quando o fenômeno El Niño atingirá a sua intensidade máxima. Até lá, as previsões de chuva do Cemaden indicam volumes abaixo da média.
O El Niño um fenômeno climático natural, que ocorre com intervalos de dois a sete anos, e que se caracteriza pelo aquecimento das águas superficiais do Oceano Pacífico na região do Equador. Isso causa a interrupção dos padrões de circulação das correntes marítimas e massas de ar, o que leva a consequências distintas ao redor do mundo.
Segunda a pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), órgão ligado ao Ministério de Ciência e Tecnologia, Luciana Gatti, à estiagem deste ano também se soma o aquecimento das águas do Oceano Atlântico, mas a ação humana é a principal causa ao desencadear um efeito dominó que se amplifica com o passar do tempo.
“Essa seca tem a ver com um processo global, mas também tem a ver com o desmatamento. A Amazônia, por causa do desmatamento, está mais seca, mais quente e ela vai ter menos condição de resistir a essa seca ou a seca vai afetá-la mais do que afetaria se ela estivesse saudável”, afirma. “Então, você tem uma série de coisas acontecendo onde uma amplifica a outra.”
Luciana é autora de uma pesquisa publicada neste ano, na revista Nature, que mostra que o aumento do desmatamento na região oeste da Amazônia puxou a alta das emissões de dióxido de carbono na floresta nos anos de 2019 e 2020.
O CO2 é o principal causador do efeito estufa e reduzir suas emissões é um desafio e compromisso assumidos pelo Brasil para cumprir o Acordo de Paris, pacto firmado entre 195 países contra as mudanças climáticas, e restringir o aquecimento global em 1,5º C em relação aos níveis pré-industriais até ao final do século.
A pesquisadora do Inpe também é autora do estudo, já publicado pela Nature, que apontou que algumas áreas da floresta já emitem mais CO2 do que absorvem. O estudo avaliou centenas de amostras de ar coletadas na parte mais baixa da atmosfera terrestre, entre 2010 e 2018, e constatou que a parte sudeste da Amazônia se tornou uma grande fonte de emissão de CO2.
Durante os últimos 50 anos, as plantas e o solo absorveram mais de 25% das emissões de gás carbônico. Já as emissões aumentaram em até 50%
Barbosa lembra que a floresta está nessa situação atual, cada vez mais recorrente, apesar dos sucessivos avisos da comunidade científica. “Já se falava disso há 30 anos, quando o Carlos Nobre fez algumas das suas pesquisas, e nunca a ciência conseguiu ser ouvida no País”, diz. “Estamos indo num caminho em que já há cientistas afirmando em estudos que já cruzamos o ponto de não retorno.”
O “tipping point”, ou ponto de não retorno, é aquele em que, na Amazônia, marca o estágio que, uma vez atingido, a floresta desmatada não se recupera mais e ingressa no processo de savanização. “Alguns estudos mostram que isso poderia ser até 30% ou 40% da floresta, mas já há outros que apontam que pode ser até 18%”, diz o professor da Universidade de Maryland.
De acordo com levantamento do MapBiomas, que atualizou os dados sobre uso e cobertura da terra de 1985 a 2021, a Amazônia perdeu 12% da sua área de floresta em 37 anos. Isso equivale a dez vezes a área de todo o Estado do Rio de Janeiro.
O climatologista Carlos Nobre, pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP), membro da Royal Society – academia britânica fundada em 1660 e considerada uma das mais antigas e prestigiadas sociedades científicas do mundo -, elenca os fatores que nos trouxeram até aqui:
– a extração de madeira, mais de 80% dela ilegal;
– os incêndios com causa humana – quando uma floresta primária é atingida o fogo não se propaga tanto, o que é diferente em uma floresta já degradada;
– o “efeito de borda”, quando pastos ao lado de florestas permitem que a ação do vento e do sol degradem o bioma;
– e as secas prolongadas e intensas.
“Estamos em uma situação muito preocupante, o Atlântico aquecido, o El Niño forte, podemos bater o recorde de 2015 e 2016″, afirma. “A Amazônia está muito próxima do ponto de não retorno. É essencial zerar o desmatamento e o fogo, temos de fazer isso imediatamente.”
Nobre diz que na COP 28, a Conferência do Clima da ONU, neste ano, em Dubai, o governo brasileiro deve anunciar o financiamento para o maior projeto de recuperação de florestas do mundo. Por meio de fundos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), 50 milhões de hectares devem fazer parte do programa, diz o cientista da USP.
A área a ser reflorestada será principalmente a região sul da floresta, a fronteira agrícola conhecida como “arco do desmatamento”, entre o Centro-Oeste e o Norte do País.