Saiu de moda a tese de que exista um antagonismo insuperável entre cientistas sociais e as forças de segurança, em pleno século XXI. A produção acadêmica e a atuação policial não são excludentes, pelo contrário. As polícias já convivem construtivamente com os sociólogos, economistas e cientistas políticos há décadas.
Aliás, não são poucos os policiais pós-graduados nesses temas. Essa dicotomia resulta dos olhares passageiros ou das disputas políticas e não é exclusiva da segurança pública. Em outros setores também remanesce alguma distinção entre “aqueles que pensam e aqueles que fazem”.
O debate lembra o filme, Santos e Soldados (Ryan Little, 2003). O roteiro em si não empolga, mas vale a provocação sobre o dilema entre os valores humanistas e o uso da força nas guerras. Em segurança pública é parecido. A rigor, está em jogo a própria concepção de segurança em seu sentido mais amplo.
De um lado estariam os que acreditam que apenas a polícia conhece o assunto, como se o crime brotasse por “geração espontânea” ou se tratasse de um “pecado original” (sem relação com processos socioeconômicos). É comum ouvir que há uma guerra entre o cidadão de bem e a bandidagem.
De outro lado, ficariam aqueles que “não gostam da polícia”, porque a polícia seria parte do problema e não da solução. Uma crença na utopia da prevenção perfeita, onde a polícia ideal não precisaria confrontar criminosos em operações armadas.
É uma contradição inventada. O princípio da segurança latu sensu coincide com o direito à vida. Não apenas o direito de estar vivo, mas o direito de viver bem. Por isso, a segurança pública em sua essência diz respeito tanto ao que ocorre antes do caso de polícia (e para que ele não aconteça), quanto ao enfrentamento qualificado da criminalidade.
Sendo assim, não basta o braço forte da polícia, como não basta também a mão amiga do Estado. Afinal, o crime se viabiliza tanto a partir da vulnerabilidade social de muitos, como por motivações econômicas (e políticas) de alguns.
Esse novelo no qual a segurança pública se desenrola tem na sua extremidade inicial as desigualdades que desabrigam os mais pobres e, na final, a incapacidade de ressocialização pelo sistema prisional.
No meio disso, um modelo de Estado que ainda caminha com velocidade analógica para compreender que são duas pontas de um mesmo carretel, que precisa costurar o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, alinhavando União, Estados e Municípios em um tecido interinstitucional e multidisciplinar.
Não custa relembrar os estudos da oficial de polícia portuguesa Ana Carolina Carvalho, “Segurança Urbana e o Desenho do Espaço Público” (Instituto de Ciências Policiais, Lisboa, 2015), que enriquece o pensamento policial com uma abordagem social e urbanística.
Partindo de outro ponto, vinha o trabalho da ativista americana Jane Jacobs, “Morte e Vida das Grande Cidades” (Nova York, 1961), relacionando a segurança urbana com a qualidade dos espaços públicos.
Mais perto de nós, há o exemplo colombiano de Medellín, onde o trabalho policial inteligente somou-se a uma gestão municipal focada em “o melhor para os mais pobres”, unindo santos e soldados para transformar a cidade mais violenta do mundo na cidade menos desigual da América Latina.
Felipe Sampaio: atual diretor do SINESP no ministério da Justiça; chefiou a assessoria dos ministros da Segurança Pública (2018) e da Defesa (2016-2017); foi secretário-executivo de segurança urbana do Recife (2019-2021); cofundador do Centro Soberania e Clima.