No Dia das Crianças de 2023, a menina Sophie Azevedo, de 11 anos, não levantou da cama. A mãe, Aline Affonso, 41, achou que era brincadeira, mas a garota não parava de chorar ao ficar de pé. Em menos de 15 dias, a dor era tão constante e intensa que ela passou a precisar de cadeira de rodas.
A resposta sobre o mistério levou semanas para sair e veio por sorte. A avó da criança comentou o caso com seu dermatologista, que hoje em dia trata a família, e foi ele quem matou a charada. Sophie tinha hanseníase, e não apenas ela. Sua mãe e tia também conviviam há décadas com a doença sem se dar conta e recebendo dezenas de diagnósticos equivocados.
O que é a hanseníase?
A hanseníase é uma doença causada por uma bactéria transmitida pelas vias aéreas. Porém, ela não é tão contagiosa como a Covid-19 ou doenças virais respiratórias. Para se contaminar, é preciso uma conjunção de dois fatores: susceptibilidade (que ainda não é bem entendida pela ciência, imagina-se que existam fatores genéticos) e convívio prolongado (geralmente de 3 a 5 anos) com algum paciente que tenha a doença e não esteja em tratamento.
As primeiras doses dos antibióticos são suficientes para interromper a transmissão, e o tratamento é simples. Porém, a hanseníase ainda é considerada uma doença negligenciada, associada à pobreza e ausência de saneamento básico.
Ao contrário do que a maioria das pessoas imagina, porém, a doença é primariamente neurológica e não dermatológica, ou seja, nem sempre os sintomas na pele são evidentes e muitas vezes podem passar despercebidos.
“Por preconceito, a hanseníase está cada vez mais negligenciada e muitos pacientes enfrentam estigmatização”, afirma o médico dermatologista e especialista em hanseníase Fred Bernardes Filho, de Ribeirão Preto (SP), que trata a família. “Algumas estimativas apontam que para cada caso diagnosticado, há ao menos oito silenciosos”, indica ele.
Como a doença precisa de persistência para se manifestar, quando há diagnóstico entre crianças e jovens, como é o caso de Sophie, este fator é indicativo de transmissão comunitária recente e também da ineficiência dos programas de controle.
“Cerca de 6% das crianças diagnosticadas com a hanseníase hoje em dia no Brasil tem grau 2 de incapacidade, o mais alto deles. É uma evidência de doença avançada, diagnóstico tardio e possibilidade de sequelas irreversíveis”, aponta o médico.
O caso de Sophie
Após os primeiros sintomas, Aline deu anti-inflamatórios para a filha e esperou que a dor passasse, o que não ocorreu. Depois de dois dias sem conseguir caminhar, a família a levou ao pronto-socorro. O primeiro diagnóstico recebido foi de esporão (um crescimento anormal do osso do pé), feito sem exames.
Ao levar Sophie para uma consulta com o ortopedista, a ideia de esporão foi descartada. Embora não tenham encontrado justificativa para o caso, os médicos enfaixaram a perna da menina e a mandaram voltar após 10 dias de repouso absoluto.
“Aquilo me deixou inconformada. Queria um diagnóstico certo pra minha filha. Em uma semana ela tinha saído de uma dor na perna para não conseguir nem se mover com andador, tivemos que pedir doações para colocar ela na cadeira de rodas. Se não fosse o Fabio Carille, o técnico do Santos, doar a cadeira, eu teria que carregar minha filha no braço”, lembra Aline.
A mãe mobilizou a família para tentar encontrar uma resposta. A avó de Sophie, que já tinha uma consulta marcada com Bernardes, acabou comentando o caso da neta com ele. “De dentro do consultório, ele me ligou e explicou tudo sobre hanseníanse e pediu para eu a levasse lá com urgência. Foi o que a salvou”, conta.
Diagnóstico tardio
Apesar de a evolução dos sintomas de Sophie parecer ter sido rápida, na verdade a família convivia com a hanseníase há anos sem se dar conta. Além da menina ter sido diagnosticada, a mãe também fez um teste rápido que deu positivo para a doença. Ela convivia há 10 anos com dores que haviam sido incorretamente diagnosticadas como fibromialgia. A tia da menina também era tratada para a mesma doença de forma equivocada.
“Eu sofria de dores intensas, ficava doente facilmente, tinha muitos problemas de saúde causados pela hanseníase sem perceber”, conta Aline. Os exames para diagnóstico final de ambas, feitos graças a descontos e doações, indicaram que dos oito nervos de Sophie avaliados, sete sugeriam contaminação pela bactéria.
Os sintomas da hanseníase
Os sintomas neurológicos da doença (formigamento e dormência nas mãos ou pés, câimbras noturnas, queimação dos músculos, sensação de agulhadas ou choques) geralmente precedem as manifestações dermatológicas (manchas esbranquiçadas ou avermelhadas, pequenos ou grandes caroços, pele com aspecto de “casca de laranja”, queda focal de pelo) em meses ou até anos.
Em Sophie, as manchas da pele eram extremamente sutis, mas pequenas áreas de seu braço não tinham mais sensibilidade. “Muitas vezes, as manchas da hanseníase são discretas e olhos não treinados podem ter dificuldade em identificá-las”, explica Bernardes.
Hanseníase menina 11 anos volta a andar (2)
Hanseníase menina 11 anos volta a andar (3)
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Embora as dores na perna sejam o que tenha levado a família ao hospital, vários outros sintomas haviam sido negligenciados anteriormente. Sophie sentia as mãos falharem e deixava alguns objetos caírem. Aos 7 anos, ela teve intensas dores nas pernas que foram interpretadas como dores de crescimento. Em nenhuma consulta, seja da mãe ou da filha, a hipótese de hanseníase foi levantada.
Com apenas um mês de tratamento antibiótico, no final de novembro, Sophie voltou a andar. “No dia em que ela me disse que estava conseguindo sentir novamente os pés, chorei muito. Ela que quis botar o pé no chão e voltar a andar, foi um momento muito mágico pra mim”, lembra Aline.
Como a hanseníase é uma doença causada por bactérias, com a morte dos agentes causadores da doença, os problemas também desaparecem, desde que o tratamento seja feito a tempo.
Preconceito ainda persiste
O preconceito contra a doença ainda persiste. Aline decidiu não ocultar seu diagnóstico ou o de Sophie para que mais pessoas possam procurar informação com os médicos. Porém, a escolha teve um peso. Uma amiga de Sophie não convidou a menina para sua festa de aniversário.
“Ela ficou muito mal. Minha filha entendeu logo que era preconceito devido à hanseníase — ela foi convidada todos os anos, só neste que não. Mas é preciso combater este preconceito. Que a nossa história sirva de alerta para que mais pessoas possam ser diagnosticadas e tratadas de uma doença que hoje em dia tem cura”, conclui a mãe.
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